Escolhi trabalhar com O Arquivo de Victor Giudice primeiro por empatia com a maneira sublime e o estilo utilizado na composição de seus versos. Segundo por encontrar na sua história elementos que levam a crer que o poeta ora comentado foi um daqueles que lutou contra a ditadura mesmo estando dentro do sistema.
Victor Marino del Giudice nasceu em Niterói, no dia 14 de fevereiro de 1934 e morreu em 22 de novembro de 1997, viveu durante um período de mudança no cenário político nacional, o período da ditadura militar (1964-1985), e viu o povo ir às ruas em busca de liberdade, em busca de justiça.
Giudice aborda a temática da coisificação do homem no ambiente laboral. Com maestria e singularidade segue pela corrente contrária, levando consigo o leitor que acompanha a vida de joão, funcionário modelo, como se seu objetivo maior fosse servir à empresa até extinguir-se.
Boa leitura e reflexão.
Saudações cordiais,
O Estudante
No
fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus
vencimentos. joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego.
Não
se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal,
esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a
agradecer ao chefe.
No
dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o
salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.
Passou
a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito.
Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.
Dois
anos mais tarde, veio outra recompensa.
O
chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.
Desta
vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior:
dezessete por cento.
Novos
sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.
Agora
joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia
menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento
aumentou.
Prosseguiu
a luta.
Porém,
nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.
joão
preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos.
Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou
a trabalhar mais duas horas diárias.
Uma
tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.
Respirou
descompassado.
-
Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.
joão
baixou a cabeça em sinal de modéstia.
-
Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial
de nosso reconhecimento.
O
coração parava.
-
Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na
reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.
A
revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.
-
De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos
cinco dias de férias. Contente?
Radiante,
joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao
trabalho.
Nesta
noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.
Mais
uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um
sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de
muita roupa.
Eliminara
certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.
Chegava
em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada.
Esfarelava-se
num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência.
A
vida foi passando, com novos prêmios.
Aos
sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo
acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas.
Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou
vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os
farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.
O
corpo era um monte de rugas sorridentes.
Todos
os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho.
Quando
completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:
-
Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias.
E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.
O
crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca
tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos.
Tentou sorrir:
-
Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer
minha
aposentadoria.
O
chefe não compreendeu:
-
Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de
alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro.
Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que
acha?
A
emoção impediu qualquer resposta.
joão
afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A
estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se,
planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.
joão
transformou-se num arquivo de metal.